Serra Gaúcha – SuoViaggio Edição n. 37
Zélia Rodrigues - PublisherRevistas Américas, Brasil, Revistas 2021
Serra Gaúcha
A terra de três culturas e… muitas histórias
As águas de março estão fechando o verão e o friozinho que começo a sentir depois de sofrer um calor escaldante fechada em casa durante o mês de janeiro não deixa dúvidas de que o outono está chegando. E mesmo que o outono nos cause apreensão em relação aos contágios de Covid-19, a vacinação nos alenta com uma promessa de vida normal em nossos corações. A chuva vai caindo nesse fim de tarde de março, fazendo um barulhinho de fundo para a maravilhosa voz de Elis Regina em conjunto com o maestro Tom Jobim, mas ainda falta alguma coisa.
Ah sim, uma taça de vinho para completar a sensação de aconchego que o outono nos traz. Não falta mais. Com a minha taça de vinho tinto na mão e embalada pelas vozes da Elis e do Tom, aprecio o cair da chuva pela janela, naquele cenário lindo onde a natureza não poderia ter sido mais generosa. Como pude demorar tanto tempo para descobrir aquele pedaço do sul do Brasil?
Na tranquilidade das minhas instalações, me rendo completamente às belezas da Serra Gaúcha.
Serra Gaúcha
A terra de três culturas e muitas históriasAs águas de março estão fechando o verão e o friozinho que começo a sentir depois de sofrer um calor escaldante fechada em casa durante o mês de janeiro não deixa dúvidas de que o outono está chegando. E mesmo que o outono nos cause apreensão em relação aos contágios de Covid-19, a vacinação nos alenta com uma promessa de vida normal em nossos corações. A chuva vai caindo nesse fim de tarde de março, fazendo um barulhinho de fundo para a maravilhosa voz de Elis Regina em conjunto com o maestro Tom Jobim, mas ainda falta alguma coisa. Ah sim, uma taça de vinho para completar a sensação de aconchego que o outono nos traz. Não falta mais. Com a minha taça de vinho tinto na mão e embalada pelas vozes da Elis e do Tom, aprecio o cair da chuva pela janela, naquele cenário lindo onde a natureza não poderia ter sido mais generosa. Como pude demorar tanto tempo para descobrir aquele pedaço do sul do Brasil? Na tranquilidade das minhas instalações, me rendo completamente às belezas da Serra Gaúcha.
Terra de Imigrantes
Em conversa com os membros de uma família de imigrantes italianos, meu marido ficou impressionado ao ouvir a história do patriarca dessa família contada com um forte sotaque vêneto. Por ser italiano, meu marido é muito hábil em distinguir os diferentes sotaques e dialetos da Itália e era surpreendente ouvir aquele senhor, da terceira geração da família e que jamais esteve na Itália, conversar mesclando palavras do dialeto vêneto ao português, num peculiar sotaque vêneto/gaúcho. A família vêneta que chegou à região com a grande onda migratória logo se dedicou ao que sabia fazer no norte da Itália, o cultivo de uvas e, mais adiante, de vinhos.
Os imigrantes italianos e alemães que chegaram à Serra Gaúcha durante a forte onda imigratória, ocorrida entre o fim do século XIX e o início do século XX, encontraram uma imensa área a ser desbravada, mas souberem reconhecer o potencial do terreno e clima da região. Com um começo difícil, as famílias de imigrantes trouxeram para a região seus conhecimentos sobre o cultivo de vinhas e encontraram no alto da serra o clima ideal para a produção de uvas de qualidade. Os imigrantes também influenciaram significativamente a arquitetura da região, especialmente na área ocupada predominantemente por alemães, onde as características construções em enxaimel continuam a encantar os visitantes das charmosas cidades da Região das Hortências. As famílias de imigrantes souberam se adaptar sem perder de vista as tradições de seus povos, mesmo que muitos dos descendentes desses imigrantes jamais tenham visitado os países de origem de seus pais e avós. Na verdade, vejo mais respeito à tradição antiga das famílias italianas e alemãs na Serra Gaúcha do que se encontra atualmente no norte da Itália ou no sul da Alemanha.
Ao final, a Serra Gaúcha conta com uma divisão cultural entre os três povos que a habitam. Assim temos a região alemã, a região italiana e a região gaúcha. Não se sabe se houve algum tipo de acordo ou simplesmente uma composição natural entre esses grupos, mas fato é que os grupos se agregaram entre si, criando uma divisão cultural com abrangência geográfica.
O charme da Região das Hortências
A região com predominância de imigrantes e descendentes de origem alemã também é conhecida como Região das Hortências. Essa região foi colonizada em meados do século XIX sobretudo por imigrantes oriundos de diferentes regiões da Alemanha, especialmente de Hunsück e da Bavária. As tradições alemãs são mantidas pelas festas típicas e pelos dialetos ainda falados por muitos descendentes dos primeiros imigrantes, mas se nota mais evidente aos olhos dos visitantes pelas construções em enxaimel das cidades dessa região. Ao chegar em Gramado até nos vem a dúvida se realmente estamos no Brasil ou se fomos transportados para uma das pequenas cidades da Rota Romântica da Bavária.
Gramado é a cidade mais visitada da Região das Hortênsias, sobretudo durante o inverno e no final do ano por causa do sucesso da iniciativa do Natal Luz. Mas, em qualquer época do ano Gramado é um encanto, parecendo mesmo fazer parte de um conto de fadas. As construções em enxaimel iluminadas me fazem lembrar de Fussen, uma das cidades da Rota Romântica da Bavária. A melhor forma de iniciar o dia em Gramado é se deliciando com o fantástico café colonial, herança dos imigrantes alemães. A mesa repleta de pães, geleias, frios, bolos e tortas é uma tentação irresistível! Nesse momento, o melhor a fazer é esquecer a balança e render-se ao pecado da gula. Diversos restaurante servem o café colonial na cidade, sendo o Bela Vista imperdível por ser o mais antigo e tradicional da cidade.
Com a barriga cheia, é hora de queimar algumas calorias conhecendo as outras maravilhas de Gramado. A melhor forma de começar o roteiro pela cidade é percorrer o seu centrinho, entre a Avenida das Hortências e a Avenida Borges de Medeiros. O entorno dessa área se parece muito com a Vila Capivari de Campos do Jordão, repleto de hoteis, restaurantes e lojas de chocolates que nos dão água na boca. Também fica nessa área a Aldeia do Papel Noel, onde é possível encontrar o Papai Noel e suas renas durante todo o ano e ainda pegar uma carona no trenó voador do bom velhinho. Não se assuste se em pleno verão começar a nevar na aldeia, afinal a área respeita o clima do Polo Norte. O parque faz a alegria das crianças, mas confesso que fiquei encantada como se tivesse os meus 10 anos de idade novamente e vi muitos adultos curtindo a experiência temática. Em tempos de pandemia, tratei de caprichar no meu pedido para o Papai Noel! Ainda no clima nostálgico da infância, segui para o Mini Mundo, outro parque temático de grande sucesso em Gramado. Difícil não se encantar com as réplicas em miniatura de construções espalhadas pelo parque. O Castelo de Neuschwanstein tem destaque especial, mas tem muita coisa legal lá. E para relaxar no fim de tarde, vale a pena passar um tempinho no Lago Negro.
A partir de Gramado, vale a pena fazer um bate e volta até a vizinha Canela para visitar a Cascata do Caracol, a maior atração da cidade. Protegida no interior do Parque Estadual do Caracol e com uma queda d´água de 130 metros de altura em meio a uma rica vegetação, a cascata proporciona um espetáculo imperdível! É possível chegar na sua base a partir de uma trilha íngreme de mais de 900 degraus, o que não é aconselhável para quem não tem muito preparo físico. Mas a vista deslumbrante da cascata também pode ser observada a partir de uma torre de 30 metros, cuja subida até o ponto de observação é feita no conforto de um elevador, ou também através do teleférico. Já no centrinho de Canela, o destaque fica por conta da Catedral de Pedra. Construída em estilo gótico inglês e com uma torre central de 65 metros de altura, a igreja domina a paisagem local. O carrilhão de 12 sinos de bronze foram fabricados na Itália e trazidos para Canela e merece uma atenção especial. Em seu interior, vale a pena dedicar um tempo para observar os belos painéis pintados pelo artista local Marciano Schmitz, retratando a aparição de Nossa Senhora de Lourdes, a Alegoria dos Anjos e a Anunciação. À noite, a igreja ganha nova vida com o show de luzes que dura cerca de 7 minutos e encanta visitantes e locais.
Vinhedos a perder de vista
Seguindo de carro da Região das Hortênsias para o oeste, em cerca de 1 hora já começamos a ver os diversos vinhedos que compõem a bela paisagem da Região Italiana. Mesmo com uma paisagem fascinante do lado de fora, confesso que muitas vezes a ignorava para me divertir com as placas de indicações de cidades menores e fora dos roteiros turísticos tradicionais, mas que me causavam certa curiosidade pelos seus nomes: Nova Pádua, Nova Sardenha, Nova Milano, Nova Treviso, Nova Roma do Sul e até mesmo uma Nova Bassano! Para quem não conhece, Bassano del Grappa é uma pequena cidade da região do Vêneto, no norte da Itália, berço da grappa, um destilado italiano que representa para a Itália o que a cachaça representa para o Brasil. Não resisti ao ver a indicação de Nova Brescia (sem acento, por favor) e resolvi dar uma espiadinha. Na verdade, a Nova Brescia em nada se parece com a Brescia da Lombardia, cidade natal do meu marido e meu lar por alguns anos, mas senti uma pontinha de nostalgia ao circular rapidamente pela Brescia brasileira. Mas, voltando para a Nova Itália, ao ver os nomes de todas essas cidades, fica evidente que a região mantém sua alma italiana, mesmo que já estejamos na terceira ou quarta geração das famílias que imigraram dos diversos cantos da Itália para explorar essa nova região brasileira.
Para explorar o Vale dos Vinhedos a melhor alternativa é começar por Bento Gonçalves, a cidade que concentra mais da metade dos vinhedos e algumas das melhores e maiores vinícolas da região. Os vinhos produzidos no Vale dos Vinhedos são os únicos do Brasil a possuírem a Denominação de Origem e Procedência, com regras rígidas de produção, e não por acaso os vinhos dessa região estão entre os melhores do país. Seguindo o modelo europeu, muitas vinícolas têm investido fortemente na estrutura hospitaleira e visitas guiadas para atrair turistas apaixonados pelo mundo dos vinhos. Sendo acostumada a visitar muitas vinícolas na Itália e na França, confesso que fiquei surpresa ao ver o nível do serviço de padrão europeu oferecido aos visitantes por boa parte das vinícolas. Degustar os bons vinhos em meio aquela imensidão de parreirais é, sem dúvida, o melhor programa do Vale dos Vinhedos.
Embora Bento Gonçalves seja o principal ponto de partida e de base para os visitantes da região, o Vale dos Vinhedos contempla outras belas cidades como Monte Belo do Sul e Garibaldi, sendo esta última conhecida como a capital brasileira do espumantes, por causa de seu grande volume de produção desse tipo de vinho. Fica em Garibaldi a vinícola Chandon, parte da requisitadíssima Maison Moët & Chandon francesa, o que trouxe para a região uma espécie de atestado de bom terroir para a produção de espumantes de qualidade. É uma enorme satisfação ver essa região brasileira se destacar ao ponto de atrair o investimento de um colosso francês na produção de vinhos como a Maison Moët & Chandon.
Seguindo pela rota dos ótimos espumantes brasileiros, cheguei a Farroupilha. Até então a cidade de Farroupilha para mim era simplesmente o local onde ocorreu a Guerra dos Farrapos de 1835, pouco sabia que a cidade – anteriormente chamada de Nova Milano e hoje um distrito de Farroupilha – foi o berço da colonização italiana na região, com o estabelecimento das primeiras famílias oriundas de Milão para a Serra Gaúcha. O melhor espumante que provei na região foi exatamente em Farroupilha, produzido com todos os parâmetros internacionais de qualidade. A cidade recebeu muitas famílias de Treviso, a terra do prosecco, e naturalmente os produtores se concentraram mais nesse tipo de vinho ao longo de décadas até se chegar a um nível de qualidade tamanho capaz de competir com os seus pares italianos e franceses.
Se não fosse pelo meu limite de tempo, teria passado muito mais tempo na Nova Itália, me deixando conquistar pelas vinícolas que têm feito um esforço enorme para produzirem vinhos de qualidade internacional e adaptados ao paladar brasileiro, mesmo em um terroir que não está entre os melhores do mundo. Meu sogro torceria o nariz para os vinhos mais leves que muitos brasileiros adoram, mas certamente reconheceria a qualidade dos vinhos mais encorpados que ele tanto adorava e me ensinou a apreciar também. Sinto apenas por não ter encontrado um Novo Cannonau na Nova Sardenha.
Ah, os cânions!
Nós brasileiros, com nossas terras fartas e de diversos cenários, estamos acostumados a ver muitas belezas naturais, mas ainda assim existem aqueles lugares capazes de nos arrancar um longo suspiro. Aconteceu comigo quando vi a imensidão e a beleza dos cânions gaúchos!
Explicando de forma sucinta e superficial (peço desculpas aos professores de geografia), os cânions são formações rochosas que sofrem um lento processo de corrosão de agentes naturais, principalmente de águas e ventos, ao longo de milhares de anos, formando vales profundos e extensos abaixo de grandes paredões. Para mim, os cânions são simplesmente lugares únicos que nos propiciam vistas espetaculares desses paredões artisticamente esculpidos pelas forças da natureza por milhares e milhares de anos. Lugares singulares onde a natureza impera.
Essa região deslumbrante, mas ao mesmo tempo arisca, acabou não sendo ocupada pelos imigrantes e passou a ser conhecida como a Região Gaúcha. É justamente nas cidades que compõem essa região mais ao alto do Rio Grande do Sul e na divisa com Santa Catarina que encontramos as tradições do povo gaúcho. Por muitos anos os moradores dessa região eram apenas os tropeiros, que viviam de transportar o gado do Rio Grande do Sul para Santa Catarina ao longo da imensidão dos cânions. Hoje, alguns desses antigos tropeiros mantêm pequenas pousadas de gestão familiar para hospedar os turistas que crescem a cada ano. Aliás, uma das melhores experiências que se pode ter na região é se sentar em torno de uma fogueira e escutar os causos dos antigos tropeiros entre um gole e outro de chimarrão. Confesso que o chimarrão não me agradou tanto assim, mas os causos eram tão interessantes que prendiam a minha atenção por horas.
A principal porta de entrada para esse mundo mágico é o Parque Nacional dos Aparados da Serra, localizado no município de Cambará do Sul e na divisa entre os estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. O parque foi construído em 1959 e conta com uma área estimada de 13 mil hectares e seu nome deriva da forma de seus paredões, que parecem ter sido aparados por uma faca. Ao que se sabe, os cânions do sul foram formados a 150 milhões de anos, a partir da ação de vulcões em conjunto com os elementos naturais (vento, chuva e sol), resultando em uma das paisagens mais incríveis que temos no Brasil. Ficam nos limites do parque os dois mais famosos e belos cânions do país, o Itaimbezinho e o Fortaleza. Embora não seja obrigatório o serviço de guia no parque, recomendo que o passeio seja guiado, pois algumas áreas são mais difíceis para serem atravessadas e o guia também contribui para um passeio mais prazeroso, nos contando os detalhes do parque e algumas curiosidades. O parque conta com três diferentes trilhas, sendo as trilhas do Vértice e do Cotovelo as mais fáceis, por passar apenas pelo planalto e pela borda dos cânions, com duração de 1 e 3 horas, respectivamente. Já a trilha Rio do Boi, cujo acesso é pelo município de Praia Grande em Santa Catarina, é para quem adora aventura e tem boa preparação física, pois percorre em cerca de 6 horas os cânions pelo seu interior, atravessando rios e proporcionando a visualização de maiores detalhes dessa beleza natural em suas diferentes perspectivas.
O Itaimbezinho é a maior atração do parque, facilmente acessado por qualquer visitante. Em meio ao planalto do Cânion Itaimbezinho, respirei fundo e tomei coragem para chegar até a sua borda. A cada passo o friozinho na barriga se intensificava e os batimentos cardíacos se aceleravam. Seria o meu medo de altura se manifestando ou a grande emoção de chegar a um dos lugares mais lindos que já vi na vida? Provavelmente um pouco das duas sensações que se misturavam naquele instante. Felizmente o céu estava límpido naquela manhã e pude ver toda a magnitude do Itaimbezinho, no alto de seus paredões de 700 metros recobertos pela bela vegetação da Mata Atlântica. No momento em que cheguei na borda o medo se esvaneceu, dando lugar ao completo deslumbramento. Algumas pessoas gritavam para ouvirem o forte eco de suas vozes naquela imensidão de paredões, mas eu preferi fechar os olhos por um instante e rever mentalmente a cena em que o Conde Felipe persegue Lívia a cavalo sobre o planalto dos cânions, com o céu azul e apenas os paredões como testemunhas do primeiro beijo do casal de enamorados. Um grande amor precisa de um grande cenário e os cânions da Serra Gaúcha coroaram com maestria uma das cenas mais românticas da novela Além do Tempo. Aliás, em meio a tanta beleza passei a compreender melhor porque a administração do parque tem o objetivo de preservar a beleza cênica da área. Se a princípio pode parecer estranho que um parque tenha como objetivo a sua preservação cênica, bastou que eu chegasse ali para entender perfeitamente esse objetivo. Afinal, o cenário singular dos cânions é um tesouro natural e, não por acaso, já foi cenário de diversos filmes e novelas. Ainda com os olhos lacrimejados pela emoção das lembranças do amor vivido pelo Conde Felipe e Lívia, vou me despedindo desse cenário magnífico com aquela sensação de saudade que as boas experiências sempre nos deixam.