Brescia – SuoViaggio Edição n. 46
Zélia Rodrigues - PublisherRevistas Publicadas Europa, Itália, Revistas 2022
BRESCIA
Brescia vista por um bresciano
É com imenso prazer que apresento essa nova edição de SuoViaggio. A matéria principal é sobre a Província de Brescia, localizada no norte da Itália. Essa matéria foi escrita pelo Alberto Balatroni, um bresciano radicado em São Paulo desde 2018 e que retornou recentemente à sua terra natal, depois de permanecer dois anos impedido de entrar na Itália por causa das restrições sanitárias impostas para conter os contágios da Covid-19. A matéria foi escrita com uma grande carga de emoção e muita sensibilidade, apresentando essa região incrível, mas ainda tão pouco conhecida pelos brasileiros, com a perspectiva de um local.
A cidade de Brescia, capital da Província, carrega com si mais de 3 mil anos de história, sendo uma das mais antigas e importantes da Itália. Além de muita história, a região conta com paisagens naturais magníficas, como o Lago d’Iseo e o Lago di Garda, castelos e burgos medievais, colinas repletas de vinhedos e montanhas incríveis.
A coluna deste mês de “Vinho & Eu” complementa a matéria principal, apresentando a você o Espumante Franciacorta, um dos melhores espumantes do mundo, produzido nas colinas de Brescia.
Brescia
Brescia vista por um brescianoNasci e morei quase toda a minha vida na Província de Brescia, localizada no norte da Itália, até decidir deixá-la para me transferir para São Paulo. Mesmo vivendo em São Paulo, a frequência com que o trabalho me levava até Brescia, não me permitia sentir saudade da minha cidade natal, pois a sensação era apenas de um distanciamento breve muito comum a um homem que passou a sua vida adulta viajando pelo mundo. Mas, de repente, o mundo mudou. A chegada da pandemia da Covid-19 ditou uma nova ordem mundial, com fronteiras fechadas e rígidos controles sanitários para os viajantes. A Itália, por ter sido um dos países que mais sofreu na primeira onda da Covid-19, manteve suas fronteiras fechadas por exatos 2 anos, reabrindo-as apenas no início de março. Ainda guardo as marcas daquela conturbada madrugada em que foi anunciado o Decreto que declarava a Lombardia como zona vermelha, com o consequente fechamento dos limites da região. Eu estava em Brescia e tinha antecipado o meu regresso a São Paulo para a manhã seguinte, mas ninguém sabia se o avião iria ou não decolar do aeroporto de Milão. Com muita apreensão e algumas cicatrizes, consegui embarcar em um dos últimos voos de passageiros antes do fechamento total dos aeroportos da Lombardia.
Dois longos anos se passaram até que pude retornar a Brescia e rever minha família, especialmente a minha mãe, uma senhora de 86 anos que viveu os últimos dois imaginando a triste possibilidade de não me rever nunca mais. Vivemos um reencontro de profunda emoção, impossível de ser descrito em palavras. Também foi grande a emoção que eu senti quando circulei pela cidade que por toda a minha vida esteve ali, mas que parecia tão diferente agora. Mesmo tendo sido sempre um apaixonado pela minha cidade natal, confesso que precisei me afastar dela para realmente descobri-la com todos os seus encantos. Embora a região da Província de Brescia seja de grande importância histórica para a Itália e conte com uma beleza natural exuberante, acaba sendo ofuscada pelas suas vizinhas Milão, Verona e Veneza, por isso é tão pouco conhecida pelos brasileiros. Mas neste momento de retomada do turismo internacional na Itália, me proponho a apresentar a você a minha terra, vista sob um novo ângulo. Vamos nessa!
Brescia
A cidade de Brescia está localizada entre as cidades de Milão a oeste e de Verona a leste, sendo Milão a principal porta de entrada para estrangeiros que decidem explorar um pouco melhor essa cidade ainda tão pouco conhecida no Brasil. Uma das explicações para existir tão pouco turismo em Brescia é o fato de a região ter tido sempre o foco na produção industrial, ao ponto de ser uma das regiões mais industrializadas da Itália. Porém, para os amantes de arte e história, Brescia é um prato cheio, pois guarda com si mais de 3 milênios de história, tendo muito a contar aos seus visitantes.
Brescia também é conhecida como “Leonessa d’Italia” (Leoa da Itália), apelido dado à cidade após combater o exército austríaco com grande bravura durante a Insurreição Italiana. O palco dessa importante batalha que durou dez dias, entre os dias 23 de março e 1º de abril de 1849, entrou para a história como Dieci Giornate di Brescia e teve como palco principal o castelo da cidade. O Castelo de Brescia foi construído na Idade Média sobre as colinas do Cidneo, o ponto mais alto da cidade, proporcionando uma vista incrível de Brescia. Com seus muros e torre ainda muito bem preservados, o castelo se tornou em um parque e museu a céu aberto, com algumas esculturas expostas no interior da estrutura, dentre as quais o Obelisco dedicado aos mártires dos Dez Dias. A parte subterrânea do castelo é aberta à visitação pública apenas em alguns meses do ano, mas vale muito a pena se programar para fazer essa visita, pois assim é possível percorrer as galerias do castelo e conhecer melhor um dos monumentos mais importantes da cidade.
Embora Brescia seja muito lembrada pela luta contra o exército austríaco, a cidade sempre teve um papel fundamental para a Itália, desde a época do Império Romano, quando a então Brixia fora uma importante cidade romana. Parte da herança romana ainda pode ser vista no centro histórico da cidade, onde fica o bem preservado Capitolium Romano de Brixia, declarado Patrimônio da Humanidade pela Unesco em 2011. O Capitólio fica no interior do Museu Santa Giulia, assim como o Teatro Romano e a estátua em bronze da Vittoria Alata, o símbolo da cidade. O Museu Santa Giulia é o maior e mais importante museu da cidade, cujo acervo retrata a longa história da cidade, desde a Época Romana até o período mais atual. Ao visitar esse museu nos damos conta dos séculos de invasões que a cidade viveu, muito por conta de sua posição geográfica estratégica.
Seguindo pelo centro histórico da cidade, a poucos passos nos deparamos com as duas catedrais da cidade, uma ao lado da outra. Ser uma das poucas cidades do mundo a contar com duas catedrais simultaneamente é mais uma particularidade de Brescia. No início do século XVII o então Duomo da cidade não comportava mais as exigências daquela época, então decidiu-se pela construção de um novo Duomo, porém o nível de conservação e a particularidade do Duomo antigo era tamanha que a sua destruição a favor de uma nova catedral significaria uma perda enorme para a cidade, daí a acertada decisão de manter ambos. O Domo Nuovo levou mais de dois séculos para ser concluído, mas é de uma beleza impressionante. Mesclando os estilos barroco e neoclássico, o grande destaque do Duomo é a sua grande cúpula repleta de janelas que iluminam a nave principal da igreja. Já o Duomo Vecchio foi construído no século XI em estilo românico. A sua forma redonda se destaque no centro da cidade, pois é um dos mais belos prédios românicos do país.
Mesmo com um centro histórico pequeno em comparação a outras grandes cidades italianas, perambular pelas ruas do centro, entre uma praça e outra, é um ótimo programa para se fazer na cidade. Passo a passo, fui caminhando e admirando os velhos prédios que sempre fizeram parte da minha vida. Com o coração e mente repletos de boas memórias, vou observando esses prédios que agora ganham uma roupagem diferente, mas sem perderam o encantamento do passado.
1000 Miglia
A charmosa corrida de carros históricos
Se Brescia não é lá muito conhecida dos turistas em geral, certamente é uma das principais metas para colecionadores e apaixonados por carros históricos, graças a Mille Miglia, o maior evento anual que a cidade sedia há quase um século. A Mille Miglia é uma corrida de rua que percorre mil milhas imperiais (cerca de mil e seiscentos quilômetros) a partir da cidade de Brescia até a capital do país, Roma, passando por diversos pontos interessantes entre o norte e o centro da Itália até retornar a Brescia. A primeira edição da Mille Miglia ocorreu em 1927 como uma verdadeira corrida de velocidade, embora disputada por não profissionais. Porém, o aumento do número de acidentes graves causados pela corrida fez as autoridades suspenderem a corrida em 1957. Após 20 anos, a Mille Miglia foi autorizada a retornar em pista – ou melhor, nas ruas –, mas como uma corrida de regularidade, ou seja, vence o piloto que manter maior regularidade durante todo o trajeto, respeitando os limites de cada etapa. O grande charme dessa corrida é que apenas veículos fabricados até o ano de 1957, quando ocorreu a última edição de velocidade, podem ser inscritos na corrida. Anualmente – normalmente no mês de maio e excepcionalmente em junho neste ano –, pilotos de todas as partes do mundo chegam a Brescia para participarem desse grande evento para os amantes do automobilismo, cujo ponto de partida e chegada é a Viale Venezia, no centro de Brescia, quando os pilotos são ansiosamente aguardados por centenas de espectadores.
O grande barato da Mille Miglia é apreciar os carros em exposição no centro da cidade antes da largada, quando é possível apreciar de perto modelos históricos de marcas renomadas como Mercedes-Benz, BMW, Jaguar, Alfa Romeo, Ferrari e Maseratti, além de marcas que fizeram história, mas não existem mais como a OM e a lendária Bugatti. Atualmente, a Mille Miglia é a grande oportunidade de colecionadores exibirem suas máquinas históricas, percorrendo algumas das cidades mais belas do centro-norte da Itália, cujo percurso é constantemente modificado para incluir novas cidades, mas sempre preservando no trajeto cenários deslumbrantes em meio a burgos medievais, colinas, parques e lagos. Em tempos de grande tecnologia automotiva, diversos ex-pilotos da F-1 já se renderem aos encantos da Mille Miglia, a corrida onde a expertise dos pilotos ainda conta mais do que a tecnologia das máquinas.
Aficionado ou não por automobilismo, é impossível não se deixar envolver pelo charme da Mille Miglia. Mas, mesmo quem não puder assistir à corrida pessoalmente, pode vivenciar a emoção de uma das corridas automobilísticas mais tradicionais do mundo no Museo Mille Miglia. Esse museu dedicado à lendária corrida de rua foi inaugurado em 2004 no local do antigo monastério medieval de Sant’Eufemia, na cidade de Brescia, através da iniciativa de uma associação de empreendedores brescianos. O museu é inteiramente dedicado à Freccia Rossa e conta com um amplo acervo de documentos e registros históricos das corridas, disponível para a consulta de interessados. Percorrer os corredores do museu apreciando as fotos de momentos importantes das muitas corridas realizadas ao longo de quase um século é vivenciar parte da emoção que sempre fez parte da Mille Miglia. Além disso, os visitantes também podem apreciar alguns modelos de carros históricos em exposição no museu, como exemplares da Fiat, da Mercedes e da Ferrari, cedidos em empréstimo ao museu por colecionadores e pelo Museu da Mercedes-Benz. O museu Mille Miglia nos permite uma agradável viagem no tempo, transmitindo a emoção de momentos únicos na vida de pilotos e fãs do automobilismo.
Franciacorta
O local onde território e vinho se confundem em perfeita harmonia
A área da Franciacorta começou a ser desenvolvida no século XV por monges e monjas beneditinos de diversos monastérios, quando obtiveram o direito à isenção fiscal pelo comércio de suas mercadorias como benefício fiscal pelo desenvolvimento da região, daí a origem do nome Franciacorta, que advém da expressão latina “curtes francae”. Quatro séculos depois o território da Franciacorta, que abrange 19 municípios localizados nas colinas da Província de Brescia, foi descoberto pelos nobres do norte da Itália que ali instalaram suas grandes villas e castelos e passaram a desfrutar do grande potencial para a viticultura que o terroir da região oferecia.
Embora haja registros de vinhedos já em tempos remotos, a região passou a ser desenvolvida de forma profissional para a viticultura apenas nos idos dos anos 1960, quando as primeiras vinícolas se instalaram na região com o objetivo de desenvolver um espumante de alta qualidade para competir com os espumantes da região francesa de Champagne. Entre o final dos anos 1960 e inícios dos anos 1970 as primeiras garrafas de espumante Franciacorta foram produzidas. O Franciacorta é um vinho espumante produzido pelo método tradicional (champenoise) e envelhecido por no mínimo 2 anos, mas podendo chegar a até 10 anos de envelhecimento para a produção de garrafas especiais em algumas vinícolas. A alta qualidade do espumante Franciacorta colocou essa região até então pouco conhecido fora do norte da Itália no mapa mundial da produção vinícola, vindo a obter a classificação DOC (Denominação de Origem Controlada) já em 1967 e a DOCG (Denominação de Origem Controlada e Garantida) em 1995.
Em Franciacorta, território e vinho se confundem por levar o mesmo nome, formando uma simbiose perfeita, onde o território proporcionou ao vinho uma grande qualidade, enquanto o vinho proporcionou ao território se tornar mundialmente conhecido. Esse perfeito equilíbrio também se expande para o cenário da região, onde as colinas repletas de vinhedos com construções antigas formam paisagens deslumbrantes, convidando os seus visitantes a um passeio sem pressa, com paradas estratégicas para conhecer alguns castelos e palácios medievais e mergulhar na rica história desse território tão singular.
Lagos de Brescia
Além de abrigar uma das mais importantes regiões vinícolas da Itália e ter muita história para contar, a Província de Brescia ainda conta com alguns dos mais belos lagos italianos, como o Lago d’Iseo e o Lago di Garda. O Lago d’Iseo era pouco conhecido internacionalmente, até ficar famoso em diversos países no verão italiano de 2016 por sediar a grandiosa obra “The Floating Piers” dos artistas plásticos Christo e Jeanne-Claude. A Ponte Flutuante consistia em ligar a parte continental às ilhas do lago, formando enormes passarelas feitas de polietileno, de modo que os visitantes pudessem sentir o movimento da água ao atravessar o percurso entre uma parte e outra, numa experiência sensorial incrível. Embora eu morasse na região naquela época e tivesse atravessado o lago por incontáveis vezes, jamais poderei me esquecer da sensação maravilhosa de fazer essa travessia a pé, sentindo o doce balanço das águas geladas de Iseo! Essa obra também colocou esse lago no mapa do mundo, atraindo visitantes de toda a Europa, além de outras partes do mundo. Jamais havia visto tantos estrangeiros percorrendo as pequenas cidades que circundam o Lago d’Iseo e se encantando com a beleza que eu tinha a poucos quilômetros de distância da minha casa. Provavelmente uma obra desse gênero não retornará ao Lago d’Iseo, mas o lago continua desde então encantando cada vez mais estrangeiros que decidem ir além das visitas clássicas na Itália.
Outra particularidade do Lago d’Iseo consiste em abrigar a maior ilha lacustre da Itália, a Monte Isola. Com um território de cerca de 13 Km2, a Monte Isola não decepciona os seus visitantes. Com muitas trilhas, Monte Isola requer uma boa preparação física para atingir as partes mais altas da ilha, como o monte onde fica o Santuario della Madonna della Cariola, construído no século XVI. Além da beleza do santuário e de seus antigos afrescos ainda preservados, os visitantes ainda que chegarem nessa parte alta da ilha serão recompensados com as mais magníficas vistas do Lago d’Iseo e de seu entorno.
Outro lago estupendo que tem a sua fração dentro da Província de Brescia é o Lago di Garda, o maior lago da Itália, com cerca de 370 km2 de extensão. Graças à sua ampla extensão e condições de vento, o Garda é uma das principais metas europeias de velejadores – amadores e profissionais. Velejar pela imensidão do Lago di Garda, em meio às colinas e às cidadezinhas encantadoras do entorno do lago, é um dos programas mais fascinantes que se pode fazer na região, mesmo que você não seja um Robert Scheidt da vida. Durante os meses de verão, diversas praias se formam à beira das águas frias do lago, sendo a charmosa cidade de Sirmione e a sua vizinha Desenzano del Garda, algumas das principais metas de turistas estrangeiros. Outras cidadezinhas brescianas encantadoras que circundam o Garda são Salò, com o seu maravilhoso lungolago, Limone sul Garda, com suas ruelas estreitas repletas de belos limoeiros, e Gardone Riviera, famosa por ter sido a casa do célebre escritor italiano Gabriele D’Annunzio, cuja estátua em bronze fica em um banquinho na beira do lago.
Passear despretensiosamente pelas margens dos lagos brescianos me fez refletir sobre a beleza da minha terra natal. Patrimônio histórico-cultural de valor imensurável, castelos medievais, colinas e vinhedos de uma beleza ímpar e o charme das pequenas cidades às margens dos lagos formam essa província que ocupa quase 5 mil km2 do norte da Itália. A pandemia da Covid-19 me tolheu por dois anos o acesso à casa, mas também foi essa pandemia que me fez olhar Brescia com os olhos de quem a vê pela primeira vez, com os olhos de um apaixonado.
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#MuseoSantaGiulia #VittoriaAlata #Brescia #Lombardia #Itália
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