Simplesmente Urbino – SuoViaggio Edição n. 66
Zélia Rodrigues Balatroni - PublisherRevistas Publicadas Europa, Itália, Revistas 2025
Simplesmente Urbino
Reflexão e contemplação por um grande tesouro italiano.
Em tempos em que a palavra overtourism, nas mais diversas traduções, ganha os feeds das redes sociais, a redação de SuoViaggio decidiu perguntar ao seu fundador uma opinião pessoal a respeito do tema. A ideia original era publicar um artigo sobre o embate entre moradores x turistas em algumas das principais cidades europeias, mas a conversa foi se desenvolvendo de forma tão natural e interessante que acabamos degringolando para um outro tema, a sua experiência pessoal em uma pequena cidade de Marche, uma das regiões menos visitadas da Itália, embora também seja uma das mais bonitas.
Deixamos de lado toda a polêmica sobre o overturismo e convidamos Alberto Balatroni, idealizador e fundador de SuoViaggio, para dividir conosco a sua experiência em Urbino, uma fascinante cidade de Marche onde o overturismo passa bem longe. Relaxe e aproveite as próximas páginas para embarcar nessa viagem no tempo.
Com curadoria da ZAffiro Viagens, apresentamos a proposta de viagem Tour do Renascimento Italiano e o tour exclusivo Jane Austen 250°.
Acomode-se e boa leitura!
SIMPLESMENTE URBINO
Reflexão e contemplação de um grande tesouro italiano
Por zÉLIA rODRIGUES
Em tempos em que a palavra overtourism, nas mais diversas traduções, ganha os feeds das redes sociais, a redação de SuoViaggio decidiu perguntar ao seu fundador uma opinião pessoal a respeito do tema. A ideia original era publicar um artigo sobre o embate entre moradores x turistas em algumas das principais cidades europeias, mas a conversa foi se desenvolvendo de forma tão natural e interessante que acabamos degringolando para um outro tema, a sua experiência pessoal em uma pequena cidade de Marche, uma das regiões menos visitadas da Itália, embora também seja uma das mais bonitas.
Deixamos de lado toda a polêmica sobre o overturismo e convidamos Alberto Balatroni, idealizador e fundador de SuoViaggio, para dividir conosco a sua experiência em Urbino, uma fascinante cidade de Marche onde o overturismo passa bem longe. Relaxe e aproveite as próximas páginas para embarcar nessa viagem no tempo.
Bem-vindos a Urbino
SuoViaggio: Os brasileiros adoram a Itália, eu mesma conheço pessoas que já viajaram diversas vezes para o país e continuam voltando, mas não conheço nenhuma pessoa, além de você, que conheça Urbino. Nos fale um pouco da cidade.
Alberto Balatroni: Ah, mas nem mesmo eu que sou italiano conhecia Urbino! (risos). Urbino é uma das principais cidade de Marche, uma região belíssima do centro da Itália, localizada entre o Mar Mediterrâneo, especificamente o Mar Adriático, e os Apeninos. Marche é uma região com uma longa história. Sempre digo que chegar a Urbino é uma verdadeira viagem no tempo, uma viagem que remonta à história, partindo de Pesaro com suas modernas fábricas de móveis, subindo pela natureza típica dos Apeninos italianos e passando por antigos vilarejos que ainda hoje oferecem as obras de artesanato local que antigamente mobiliavam as casas dos nobres. Como a cidade é muito íngreme, a subida lenta até o centro histórico ajuda você a refletir e imaginar como essas terras devem ter sido no passado distante, imaginando um mundo bem diferente do atual, onde a beleza natural e a calmaria nos convida a frear a correria para um momento de contemplação e reflexão.
SV: Realmente um convite para quem quer evitar a superlotação das grandes cidades italianas! Você disse que nem mesmo você conhecia Urbino, como assim?
AB: Bom, eu sou de Brescia, no norte da Itália e, embora já tivesse viajado muito por todo o país, nunca tinha ouvido falar de Urbino até decidir encarar a faculdade de Sociologia com especialização em Mídia. Era meados dos anos 1990 e estava em uma carreira em ascensão, mas não tinha concluído a faculdade. Ao mesmo tempo que precisava concluir a faculdade, não era uma opção deixar o meu trabalho para estudar em período integral, como é o normal na Itália. Foi nesse momento que passei a ver as – poucas – possibilidades disponíveis para fazer um curso à distância, num tempo em que ninguém falava do modelo EAD de ensino. Estávamos na segunda metade dos anos 90, a inovação tecnológica acelerava e em poucos anos vemos a rede www e os serviços GSM surgirem quase simultaneamente, mas mesmo com uma tecnologia ainda incipiente, Urbino já contava com uma organização impressionante para alunos que não tinham disponibilidade de tempo para frequentar os cursos durante o dia, sendo uma das primeiras universidades a oferecer assistência bem organizada aos estudantes trabalhadores. Assim, fui conhecer a Libera Università degli Studi di Urbino e, consequentemente, a cidade onde a universidade está instalada, que até então era completamente desconhecida para mim.
SV: E qual foi a sua primeira impressão da cidade de Urbino?
AB: Um desafio! O caminho para se chegar ao centro histórico de Urbino, onde também fica a universidade, é feito de uma longa subida, que começa suave e tranquila, mas aos poucos vai se tornando cada vez mais árdua, até finalmente chegar às portas da cidade. Me recordo subindo a estrada provincial pela primeira vez. Passando pela vegetação típica do lugar, surgiu ao fundo um muro, um muro alto que parece querer convidar a ficar “longe”, pensei: “será que cheguei a Urbino?”. Na minha ignorância de quem estava habituado ao cosmopolitismo de Milão, imaginava Urbino como uma cidade moderna, com ruas modernas, trânsito, arranha-céus e letreiros de neon, mas ao invés disso me deparei com algumas muralhas antigas que fortificam a cidade. Continuando a minha jornada, enquanto pensava “mas quem me fez fazer isso”, percebi que essas muralhas têm uma extensão considerável, na verdade, têm cerca de 2km de extensão, definitivamente muito largas e imediatamente fazem você entender o quão importante era a defesa das cidades nos tempos antigos. Em meio ao cansaço de tanta subida fiz uma analogia entre a dificuldade de se fazer aquele caminho íngreme e conseguir concluir a universidade à distância em um tempo em que a internet era ainda um bebê.
História de Urbino
SV: Você pode nos contar um pouco mais sobre a história de Urbino?
AB: Claro. Urbino é uma das cidades mais antigas da Itália, com documentos que comprovam que as primeiras populações que se fixaram naquela área datam dos séculos III e II a.C. e, durante o período do Império Romano, a cidade teve uma grande importância, recebendo o nome de Urvinum Metaurense. A cidade estava localizada ao longo da Via Consolare, uma estrada alternativa à Flaminia. Sua posição era estratégica devido à proximidade com o desfiladeiro de Furlo e com a própria Via Flaminia, uma importante rota de conexão entre Roma e o norte da Itália, que na época ainda era uma fronteira. Assim como grande parte de Marche, o território de Urbino também foi palco da sangrenta Guerra Gótica. Fazia parte da Pentapoli annonaria, uma província que controlava as rotas de trânsito para a Úmbria, Roma e Toscana. Com a chegada dos francos, Urbino passou ao domínio formal do Papado e mais tarde se envolveu nas lutas entre os senhores feudais de Montefeltro, entre os quais se destacavam os condes de Carpegna. Constituiu-se também como um município livre, embora os nobres do território circundante sempre tenham tentado controlá-la, fazendo com que eles próprios elegessem o Podestà, que atualmente é o Prefeito. Através da história, chegamos a 1155, quando um nobre gibelino, Antonio da Montefeltro, deu início à dinastia Montefeltro, que durou vários séculos. Estamos no século XII e a cidade começa a tomar forma, a se posicionar no mundo nobre da época em que a Itália ainda não existia como um “Estado”, mas apenas como uma “área geográfica” e as famílias nobres lutavam entre si para conquistar novos territórios e é por isso que todo o centro histórico de Urbino é cercado pelas imponentes muralhas medievais.
SV: É possível visitar Urbino em um único dia? E qual a melhor forma de conhecer a cidade?
AB: Urbino é uma cidade bem pequena e muito concentrada, então é perfeitamente possível conhecê-la em um dia. O melhor ponto de partida para explorar a cidade é o centro histórico, dominado pela muralha medieval ainda bem preservada. Na praça principal se concentram os principais prédios de Urbino, como a Prefeitura, a Catedral e, claro, a Universidade, que fora fundada em 1506 e ocupa um grande número de prédios antigos. Percorrer o centro histórico de Urbino não é para todos, por causa de suas subidas íngremes e degraus, mas para quem tem energia, vale a pena encarar o desafio para vivenciar uma autêntica imersão no passado. Por causa dessa geografia desafiadora, para quem tem dificuldade de locomoção foi construído um elevador que leva os visitantes até a entrada do Palazzo Ducale, mas enquanto estive em Urbino precisava fazer o percurso mais difícil para evitar o pórtico na saída do elevador, pois passar por baixo dele traz azar aos estudantes!
SV: Conte melhor essa coisa de azar. Então você é supersticioso?
AB: Um pouco, afinal é melhor não arriscar, né? Bom, a maior atração de Urbino é o Palazzo Ducale, uma construção magnífica da época do Renascimento, quando Urbino foi governada por Federico da Montefeltro, um líder habilidoso, um estadista astuto e, acima de tudo, um refinado homem de cultura. A construção do palácio exigiu a participação de vários arquitetos renomados da época, como Luciano Laurana e Francesco di Giorgio Martini, que dividiram a tarefa de criar as diversas partes que compõem o complexo palaciano. Quando entrei no prédio da minha faculdade pela primeira vez, logo fui questionado se já havia visitado o Palazzo Ducale. Muito constrangido por ainda não ter visitado o palácio, já que imaginava ser um dever de todo estudante transmitir suas saudações ao fundador da cidade, me antecipei em explicar que por falta de tempo ainda não havia visitado o palácio, mas que já estava na minha agenda para o dia seguinte. Foi então que meus colegas suspiraram de alívio e responderam em uníssono um contundente não, seguida da explicação de que os estudantes são proibidos de visitar o Palazzo Ducale antes da formatura, pois traria azar! Podemos visitá-lo apenas depois da formatura. Preferi não arriscar e, embora passasse pelo palácio em todas as vezes que me dirigia para a universidade, apenas visitei o seu espetacular interior alguns anos depois de formado.
Palazzo Ducale e
Galleria Nazionale delle MarcheSV: E a espera valeu a pena?
AB: Sem dúvida! O palácio é incrível, grandioso externa e internamente. Passar pela biblioteca do Duque e ver livros e objetos de sua época foi uma das grandes experiências da minha vida. Para se ter uma ideia da magnitude do palácio, em seu interior se encontra a Galleria Nazionale delle Marche, cujo acervo conta com obras do Renascimento, feitas pelos artistas mais respeitados da época, passando por esculturas desenvolvidas com diferentes técnicas, além de objetos diversos daquela época, como mobiliário, cerâmicas e obras de arte têxtil, formando uma exposição permanente incrível que ajuda a entender a importância artística desse território. Muitas obras têm referências religiosas, o que se explica pelo fato de Urbino ter sido um Vicariato da Santa Igreja, o que acabou influenciando as obras da época, mas não a ponto de impedir o uso de outras fontes de inspiração. Poucas pessoas sabem, mas o acervo de arte do palácio guarda um verdadeiro tesouro do Renascimento, o quadro conhecido como A Muda de Raffaello Sanzio, um dos grandes nomes do Renascimento que nasceu em Urbino. O Retrato da Mulher Gentil é uma obra-prima de Raffaello, comparado a Monalisa de Leonardo Da Vinci. Porém, enquanto as pessoas se acotovelam no Louvre para ver a Monalisa, eu pude apreciar cada detalhe de A Muda sozinho, como se fosse uma visita reservada para mim, pois mesmo durante a alta estação, o fluxo de visitantes em Urbino é muito pequeno.
Casa de Rafael
SV: É interessante saber que Rafael é de Urbino, pois as pessoas estão acostumadas a associar o Renascimento à Florença.
AB: Sim, estou acostumado a ouvir sobre o Renascimento italiano como Renascimento florentino, o que para nós italianos são duas coisas diversas, pois tivemos importantes mestres vindos de outras regiões. O que fez de Florença a capital do Renascimento foi a concentração dos grandes artistas, na época financiados pelos banqueiros de Florença, especialmente pela família Medici. Rafael foi um dos artistas mais emblemáticos da Itália daquela época. Naqueles anos Urbino era o coração do Renascimento e teve um papel muito ativo graças ao trabalho realizado pelo Duque, mesmo vindo a se transferir para Florença posteriormente, foi em Urbino que Rafael se consolidou como artista. Se você pensar no Renascimento, sugiro ir além da Toscana, dê uma olhada também em Marche e, melhor ainda, em Urbino.
SV: E além da obra A Muda, o que mais se pode ver de Rafael em Urbino?
AB: A sua casa! Aliás, visitar a casa onde esse incrível artista nasceu e cresceu nos ajuda a entender como a vida naqueles anos era inteiramente familiar. A casa, localizada em uma das muitas ladeiras de Urbino, foi preservada assim como era na época de Rafael, tendo sido enriquecida com algumas de suas obras quando transformada em museu, inclusive com um dos mais importantes autorretratos que o artista pintou. A poucos passos da casa de Rafael foi construído uma estátua do artista no centro da Piazza Roma, um monumento à grandiosidade do mais ilustre cidadão da cidade, inaugurado no fim do século XIX, sendo um dos pontos de referência da cidade até hoje.
Fortaleza de Albornoz
SV: Anteriormente, você falou sobre a interessante história da cidade de Urbino, o que os viajantes podem ver dessa história?
AB: É possível visitar a Fortaleza de Albornoz, localizada no topo da cidade, com acesso a partir da Piazza Roma, ou Piazza del Crescione, como gosto de lembrar com carinho, passando pelo Monumento a Rafael. A fortaleza foi originalmente construída separadamente com o objetivo de proteger a cidade e, ao mesmo tempo, dominá-la. Sua construção é atribuída ao Cardeal Albornoz, daí o seu nome. Não se sabe a data precisa de sua construção, mas referências históricas indicam o século XIV, mas foi somente no início do século XVI que a fortaleza foi incorporada às muralhas da cidade, reforçando sua proteção. Hoje você pode visitar e admirar a vista da cidade que se tem de lá, em particular do Palácio Ducal. Normalmente as fortalezas são construídas pelos governantes das cidades, mas neste caso, temos uma fortaleza construída por um cardeal e isso é intrigante. Naquela época, o poder “temporal” da Igreja Católica sempre esteve em conflito com o poder “político” do território, então especula-se que a construção da fortaleza no “degrau” mais alto da cidade, acima do Palácio do Duque, foi o modo de a Igreja ratificar a própria superioridade.
SV: E para finalizar, o que você sugere para os nossos leitores interessados em incluir Urbino em uma viagem pela Itália?
AB: Bom, uma vez vistas as atrações principais da cidade, como o Palazzo Ducale e a Casa de Rafael, sugiro percorrer o centro histórico da cidade de forma livre, observando os detalhes das construções históricas. Vale a pena parar para ver a catedral da cidade que sobreviveu de forma impressionante a 3 terremotos, com a sua escadaria que nos faz refletir sobre como cada degrau deve ser o resultado de uma decisão e não um caminho tomado de forma automática e inconsciente. Próximo à catedral, fica o Oratório de São João Batista, que contam com impressionantes afrescos pintados no início do século XV pelos irmãos Lorenzo e Jacopo Salimbeni, que se destacam pela composição elaborada e pelo senso de profundidade. Os afrescos retratam cenas da vida de São João Batista, com destaque para os gestos e expressões dos personagens, que revelam interesse pela emotividade das cenas, tornando as obras particularmente envolventes, combinando estética refinada e um uso magistral de cor e luz. Ah, e não se pode deixar Urbino sem provar os maravilhosos crescioni, que são muito similares à piadina romagnola. Perdi as contas de quantos crescioni comi ao longo dos anos de meu estudo, mas ainda hoje, décadas depois, ainda me lembro do sabor daquele prato tão simples, mas tão marcante que se torna inesquecível, assim como a cidade de Urbino.